Autoficção como Escrita de Si
- Kelen Pessuto
- 19 de mar.
- 3 min de leitura

A autoficção surge como um gênero literário que mistura elementos da autobiografia com a ficção, criando uma narrativa híbrida e fluida que desafia as fronteiras entre o real e o imaginário. Ao escrever autoficção, o autor não se limita a relatar sua própria vida, mas cria uma versão de si mesmo que pode ser manipulada e modificada através da ficção, explorando os limites entre o vivido e o inventado. Esse gênero permite que o autor brinque com a ideia de verdade e autenticidade, oferecendo uma representação da vida mais subjetiva e fragmentada.
Annie Ernaux, em suas obras, frequentemente flerta com a fronteira entre autobiografia e ficção, embora ela prefira não usar o termo "autoficção" explicitamente. Em livros como O Ato de Morrer (1993) e A Verdade sobre o Caso de Marie (2008), Ernaux utiliza uma abordagem que mistura suas próprias vivências com uma narrativa ficcional, ampliando o escopo de suas memórias pessoais. Ela é conhecida por fazer de sua própria experiência um objeto de reflexão, investigando como o indivíduo se vê em relação aos outros e às estruturas sociais que o moldam. A autoficção, para Ernaux, funciona como uma maneira de construir uma narrativa do eu que é ao mesmo tempo íntima e crítica, permitindo-lhe explorar a complexidade da identidade e da memória de maneira mais aberta e menos restritiva.
O conceito de autoficção é aprofundado em Sheila Heti, autora de Como Ser Mulher (2014) e A Vida dos Nossos Avós (2020), que se caracteriza pela combinação de elementos de ficção e realidade em suas narrativas. Em A Mulher de 30 Anos (2012), Heti se posiciona como uma escritora que mistura o real e o fictício, criando uma persona ficcional que, ao mesmo tempo, reflete sua experiência de vida e faz questionamentos mais amplos sobre o papel das mulheres na sociedade. Heti não se limita a relatar sua vida como ela é, mas cria um personagem que explora dilemas existenciais e sociais, refletindo a busca por identidade, propósito e autonomia. Sua escrita destaca a ambiguidade da autoficção, onde a verdade não é simples e linear, mas fragmentada e multifacetada.
O gênero autoficcional propõe uma reinterpretação da identidade, tornando-a não uma narrativa fixa e coerente, mas algo fluido e mutável, que pode ser moldado pelo escritor de acordo com suas intenções e necessidades. Esse processo de reconfiguração do eu é abordado por Roland Barthes, que em A Morte do Autor (1967) argumenta que o autor não é mais o detentor absoluto do significado de sua obra. O mesmo pode ser dito sobre a autoficção, onde o “eu” narrado é desconstruído e se torna uma criação literária que depende da interpretação do leitor, desafiando a ideia de que a escrita sobre a vida pessoal de alguém seja algo unívoco e transparente.
A autoficção, portanto, propõe uma reflexão sobre os limites do eu, sobre a construção e reconstrução da identidade e sobre como o escritor, ao manipular sua própria história, também lida com a ficção de si mesmo. O jogo entre o real e o imaginário nas obras de Ernaux e Heti nos ajuda a entender que a identidade é algo dinâmico, que não se prende a uma única versão ou narrativa, mas está em constante transformação.
Ao escrever sobre si de forma autoficcional, tanto Ernaux quanto Heti criam um campo onde o autor não é mais um sujeito passivo da narrativa, mas um agente ativo que mistura a realidade com a invenção, questionando as fronteiras entre o vivido e o narrado. O que se estabelece é uma reflexão sobre a própria prática de escrever a vida, e como isso nos permite reinventar quem somos e como somos vistos pelos outros.
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